John Maxwell Coetzee nasceu
na Cidade do Cabo, África do Sul, em 9 de fevereiro de 1940. Sua mãe era uma
professora de escola primária e seu pai advogado e, embora os pais de Coetzee
não fossem de ascendência britânica, contando com uma extensa genealogia
pontuada por colonos africâneres, a língua falada em casa era o Inglês.
Coetzee recebeu sua
educação primária em Cape Town e na cidade próxima de Worcester. Para o ensino
secundário frequentou uma escola na Cidade do Cabo dirigido por uma ordem
católica, dos Irmãos Maristas.
Entrou na Universidade da
Cidade do Cabo em 1957 e, em 1960 e 1961 graduou-se, sucessivamente, com honras
em Inglês e Matemática. Passou os anos 1962-1965, na Inglaterra, trabalhando
como programador de computador, enquanto fazia pesquisas para uma tese sobre o
romancista Inglês Ford Madox Ford.
Em 1963, casou-se
e teve dois filhos. Em 1965, entrou na escola de pós-graduação da Universidade
do Texas, em Austin, e, em 1968, graduou-se com um PhD em Inglês, linguística e
línguas germânicas.
Durante três anos
(1968-1971) Coetzee foi professor assistente de Inglês na Universidade Estadual
de Nova York. Depois que um pedido de residência permanente lhe foi negado, em
virtude de sua participação em protestos contra a Guerra do Vietnã, voltou à
África do Sul.
De 1972 até 2000, ocupou
uma série de posições na Universidade da Cidade do Cabo, a última delas como
Distinguished Professor of Literature.
Entre 1984 e 2003, ensinou
frequentemente nos Estados Unidos.
Coetzee começou a escrever
ficção em 1969. Escreveu obras de ficção, ensaios, ensaios sobre a cultura
Africana, memórias ficcionais, palestra ficcionada e etc. Várias de suas obras
foram agraciadas com prêmios, gozando o autor de grande reputação no meio literário.
Ganhou notoriedade
internacional em 1980, com o lançamento de sua terceira novela (À Espera dos
Bárbaros) e teve algumas de suas obras censuradas na própria Africa do Sul.
Coetzee também tem sido
ativo como tradutor de literatura holandesa e africâner.
Em 2002 Coetzee emigrou
para a Austrália e vive com sua parceira Dorothy, em Adelaide, onde ocupa um
cargo honorário na Universidade de Adelaide.
“Não é fácil perceber o estilo de seus livros. Sua escrita é
daquelas de fluidez aparentemente simplória. Um olhar menos analítico poderia
ver apenas uma prosa que não se dá excessivamente a descrições e adjetivações.
Em compensação, mesmo um desatento não deixaria passar despercebido sua
predileção por digressões psicológicas, precisas em sua escolha de palavras,
como uma conta de matemática.
Há muitas coisas em comum a
todos os seus livros: o desconforto provocado no leitor é uma delas. Coetzee
constrói protagonistas sofridos, incapazes de estabelecer relações interpessoais
sadias, ou mesmo constantes. Quem sabe um reflexo da própria personalidade —
sua fama de esquisito e misantropo justifica a recorrência dos distúrbios de
personalidade que permeiam sua obra. “
Foi duas vezes agraciado com o prêmio Booker Prize da
Grã-Bretanha, em 1983 e 1999. O Booker Prize é um galardão literário
internacional atribuído de dois em dois anos a um autor de ficção, vivo,
de qualquer nacionalidade, com obra publicada em língua inglesa,
original ou traduzida.
Em 2003 recebeu o Prêmio
Nobel de literatura e como descrito pela Academia Sueca “os livros de J.M.
Coetzee são caracterizados por sua composição bem talhada e pelo brilho
analítico". Vale esclarecer que ambos
os prêmios procuram destacar a influência de um escritor no campo da literatura, sendo
um reconhecimento do trabalho pessoal, e não de uma obra em particular.
África
do Sul, Apartheid e pós apartheid
A Africa do sul foi colonizada, principalmente, por
holandeses, ingleses, franceses, flamencos e alemães.
A descoberta de diamantes, em
1867, e de ouro, em
1884, iniciou a "Revolução Mineral" e o aumento do crescimento
econômico e da imigração. Isto intensificou a subjugação dos povos indígenas
pelos sul-africanos europeus. Durante
os períodos coloniais holandês e britânico, a segregação racial
era majoritariamente informal.
A segregação racial vai
sendo aos poucos legalmente institucionalizada, por lei, e ficou conhecida como
apartheid.
O apartheid foi o conjunto de leis imposto pela
minoria branca para que negros, mestiços e asiáticos vivessem separados. Embora
tenha sido instuticionalizado à partir de 1948, já existiam leis anteriores a
essa data.
A base do arcabouço jurídico da segregação na África
do Sul:
- 1910: A Constituição exclui negros do governo e proíbe negros de
votar.
- Lei das Terras (1913) :
Determina que apenas algumas terras ( em
torno de 10%) – as menos férteis – poderiam pertencer aos negros.
- Lei dos Nativos (1923):
Determina que áreas urbanas
são reservadas a brancos. Os negros podiam circular, mas com um “passe”, sem o
qual seriam presos e enviados à zona rural.
- 1926 – Fica vedado o acesso de negros a profissões e
atividades especializadas.
- Lei do Passe (1945):
Obrigava os negros a portarem
caderneta na qual estava escrito aonde eles poderiam ir
- Lei do Casamento (1949):
Proíbe o casamento
inter-racial.
- Lei da Imoralidade (1950):
Proíbe relação sexual
entre brancos e pessoas de outras raças.
- Lei de Registro (1950):
Classifica os sul-africanos
no nascimento como brancos, negros, asiáticos e mestiços
- Lei dos Bantustões (1951):
Permite que negros sejam
deportados para territórios arbitrariamente criados (Bantustões), onde eles poderiam
estabelecer um governo local.
- Lei da Educação e
da Reserva de Benefícios Sociais(1953):
Oficializa
a separação de crianças brancas e negras (trouxe várias medidas explicitamente
criadas para reduzir o nível de educação recebida pela população negra) e
proíbe pessoas de diferentes etnias de usar as mesmas instalações públicas como
bebedouros, banheiros e assim por diante.
- Lei de Minas e Trabalho (1956): formalizava a discriminação
racial no emprego.
- Lei da Cidadania (1970):
Retira dos negros dos
Bantustões a cidadania sul-africana
A África do Sul foi
governada pela minoria branca durante mais de três séculos e viveu durante 46
anos sob o regime do apartheid.
Em 17 de junho de 1991, o último
presidente branco do país, Frederik Willen De Klerk, revogou as últimas leis
que sustentavam o sistema segregacionista.
O país se transformou em
uma democracia no dia 27 de abril de 1994, quando são realizadas as primeiras
eleições multiraciais, na qual se elegeu o primeiro presidente negro, Nelson
Mandela.
Após o fim do apartheid,
o novo regime aplicou diversas ações afirmativas
visando beneficiar as vítimas do regime discriminatório. No entanto, a herança
do apartheid e as desigualdades socioeconômicas que ele promoveu e
sustentou prejudicaram, prejudicam e irão prejudicar a África do Sul por muitos
anos.
No período pós-apartheid,
o desemprego tem sido
extremamente alto e o país tem lutado para lidar com as muitas mudanças.
Enquanto muitos negros subiram para as classes média e alta, a taxa global de
desemprego de negros piorou entre 1994 e 2003. A pobreza entre os brancos,
antes rara, aumentou, contudo o padrão de vida da
minoria branca ainda é melhor do que o da maioria negra.
Para o historiador José
Augusto Dias Júnior, “o apartheid foi superado apenas em alguns aspectos, e a
divisão pela cor ainda existe.
— Tudo aquilo ficou na cabeça das pessoas. O
regime foi superado jurídica e socialmente, mas os fantasmas do período ainda
assombram a África do Sul. Não se apaga tanto tempo de apartheid assim. Ele
afirma que o grande avanço pós-apartheid foi a instituição de um sistema
jurídico e político que está baseado na igualdade de direitos para brancos e
negros”.
Segundo pesquisa elaborada
pela ONU (período 1998-2000), a África do Sul foi classificada em 2o lugar
em assassinatos e em 1o
para assaltos e estupros per capita. As
estatísticas oficiais mostram que 52 pessoas são assassinadas todos os dias. O
número relatado de estupros por ano é de 55.000, mas estima-se que 500 mil
estupros são cometidos anualmente no país.
O estupro é um problema
comum na África do Sul, em uma pesquisa de 2009, um em cada quatro homens
sul-africanos admitiram ter estuprado alguém. A África do Sul tem uma das
maiores incidências de estupros de crianças e bebês no mundo. Em um
levantamento realizado entre 1.500 crianças escolares no township de Soweto, um
quarto de todos os meninos entrevistads disseram que "jackrolling",
um termo para estupro em grupo, era algo divertido.
NOS ÚLTIMOS 10 ANOS NA ÁFRICA DO SUL:
- MAIS DE 10 LÉSBICAS FORAM ESTRUPADAS POR SEMANA SOMENTE NA CIDADE DO CABO
-150 MULHERES SÃO ESTRUPADAS TODOS OS DIAS
- DE 25 HOMENS ACUSADOS DE ESTRUPO, 24 NÃO SÃO PUNIDOS
SITUAÇÃO DA MULHER NA ÁFRICA DO SUL:
- UMA MULHER É ESTRUPADA A CADA 86 SEGUNDOS
- UMA EM CADA 3 MULHERES SERÁ VIOLADA EM SUA VIDA
- UM EM CADA 3 HOMENS VAI ESTRUPAR UMA MULHER EM SUA VIDA
- 4 MULHERES SÃO ASSASSINADAS TODOS OS DIAS, VÍTIMAS DE ALGUM TIPO DE VIOLÊNCIA
Nos últimos anos, a
população branca vem sendo atingida por uma onda de violência, principalmente
na zona rural, onde milhares de agricultores foram mortos.
Desde o fim do apartheid,
mais de 1 milhão de brancos deixaram o país. A violência contra os brancos é
tão grave, que o termo "genocídio" é
usado para descrevê-la. Em 8 de Janeiro de 2012, durante
a celebração do centenário do Congresso Nacional Africano, o presidente Jacob Zuma cantou
uma canção que
incita a violência contra a minoria branca.
Contudo, existiu e continua
a existir apologistas acadêmicos para o apartheid argumentando que
apesar da implementação do apartheid na África do Sul ter suas falhas,
ele tinha a intenção de ser um sistema que separasse as raças, prevenindo os
"Brancos" (e outras minorias) de serem "engolidos" e
perderem sua identidade, mas trataria, contudo, as raças de forma justa e
igual.
Desonra
Em Desonra, John M.
Coetzee traça atráves da ficção, um retrato da condição humana no período
Pós-apartheid, envolvendo o leitor, numa história desconcertante, do começo ao
fim.
No livro os personagens são
ficcionais, assim, não incorporam limitações. Estes são complexos, e em
diversas situações agem de maneira inesperada e suas atitudes acabam por fugir à
nossa compreenssão.
O narrador é o próprio
personagem, David, expondo em parte seus pensamentos, muitas vezes
desconfortáveis e passando por monólogos interiores.
Desonra, bem como as outras
obras do autor, aborda de modo chocante e estarrecedor a violência humana, a
desonra pública, a inadequação aos lugares e a incapacidade de se relacionar.
Ficar impassível diante
desse livro é impossível.
Pedro Eduardo
Portilho de Nader -Historiador e doutor em filosofia pela FFLCH-USP, campinas
SP
“O livro de Coetzee tem
sido saudado pelo estilo "seco e conciso" ou "preciso, algo
lacônico e distanciado" e pela prosa "límpida e despida"; pelo
"tom soturno" e pelo "enredo forte e temática atual". A crítica
ressalta a "força nas palavras" em cada descrição e em cada diálogo –
escrita "direta e reta", "desencanto radical" e
"dureza sem concessões" são as expressões, usadas de forma
reiteradamente lisonjeiras, encontradas sobre o romance.
Desonra tem sido admirado,
recebendo elogios, pela crueza da linguagem e pela inflexibilidade de sua
literatura A linguagem procura ser crua para marcar, assim, a realidade cruel.
A literatura se pretende dura para mostrar essa realidade pontuada pelas
incompreensões.
A sociedade tal como
formulada em Desonra é formada e marcada por incompreensões absolutas e – por
serem absolutas – insuperáveis. Os personagens são marcados pela incompreensão
desde o início e não adquirem qualquer compreensão até o final. Não compreendem
o outro e nem a si mesmos (agem por impulso, sem auto-compreensão). Eles não
são capazes de desenvolver qualquer grau de compreensão e apresentam
justificativas para essa incapacidade. Cada personagem imerge em sua própria
escuridão, formada pela incompreensão completa.”
Análise
do Livro Desonra realizada por Marilia Fátima Bandeira - Mestre em Literatura Inglesa
pela USP, atualmente trabalhando no doutorado com as obras de J. M. Coetzee,
Nadine Gordimer, Chinua Achebe e Wole Soyinka.
“Por suas peculiaridades, a
África do Sul propiciou farto material para Coetzee. A representação estética
produzida por ele tem como pano de fundo uma das sociedades mais violentas do
mundo, na qual o estupro é um problema nacional, e onde até poucos anos os
nativos eram sistematicamente submetidos à violência do Estado e da
sociedade civil.
Como resultado da violência
contínua e injusta, a violência está disseminada em todas as camadas da
sociedade pós-apartheid, e não se encontra mais restrita ao poder do Estado.
No entendimento do autor, não haveria como os brancos
saírem ilesos após tantos séculos de maus tratos contra os nativos. Os
elementos possibilitadores do mal historicamente construídos na colonização
agora são reelaborados pelos nativos que alcançaram o poder e pelos brancos que
lá permaneceram, lavando a violência historicamente sofrida com mais violência.
Ao longo do livro David vai
sendo esvaziado em sua identidade. Antes um homem bonito, cuja maior
preocupação era a satisfação de seus desejos sexuais, viu-se, repentinamente,
envelhecido. Sem muita disposição para jogos de sedução, mantém encontros
semanais com a prostituta Soraya como meio de satisfazer suas necessidades
sexuais.
Quando os encontros com
Soraya cessam, ele pensa em castração. Envelhecer e morrer parece ser o único
futuro de David até Melanie Isaacs, sua aluna na Universidade, surgir em sua
vida.
Após ser expulso da
universidade pela revelação do seu envolvimento com Melanie, o declínio de
David se intensifica. David deixa a cidade
decidido a passar um tempo com sua filha na fazenda que esta possui. No ambiente rural, a perda
de poder de David se acentua em oposição ao ganho econômico e social obtido por
Petrus, negro, ex-empregado na fazenda, atual co-proprietário. Graças aos
subsídios do governo e ao conhecimento de que vivem em novos tempos, Petrus vai
se firmando como uma nova classe social emergente, parte da atual raça
dominante.
No entanto, fica
evidenciado no romance que nem mesmo os nativos terão as mesmas oportunidades na
nova sociedade.
Entre Petrus, os homens que
atacaram Lucy (estupro) e David abre-se o fosso da diferença social e econômica,
cujo resultado separa os homens, entre aqueles que detêm o poder e os que não
encontram espaço na sociedade.
Petrus representa a nova
classe média negra, resultado do poder político decorrente do fim do apartheid,
cujo novo governo promove transformações em todas as esferas, especialmente por
meio de subsídios para a compra de terras, a construção de casas, o plantio e,
muito especialmente, por meio da equalização das oportunidades. Nem
todos os negros conseguiram um lugar melhor na sociedade e nem todos puderam
contar com os subsídios do governo.
O protagonista menciona a
grande campanha de distribuição em curso no país. David vê a invasão de sua
casa na cidade e o roubo de seus pertences como reparações. Para ele, a
redistribuição elaborada pelo governo tem seu paralelo, não-oficial, nos roubos
e invasões das propriedades dos brancos que aconteceram nos anos subseqüentes
ao fim do apartheid. A equalização significa, na prática, uma redistribuição de
rendas e oportunidades que implicará, para o homem branco, uma insegurança que
ele nunca experimentou antes.
Fica claro que enquanto
Petrus prospera, David se deteriora. A decadência de David é consequência das
inversões de poder. De antigo detentor da autoridade que lhe era conferida pela
cor e pela posição superior ocupada por um intelectual, passa a pária e
indesejado.
Uma vez informado sobre a
gravidez de Lucy, o protagonista quer interferir na vida e nas decisões da
filha cuja escolha, no entanto, já foi feita quando ela decidiu não denunciar
os estupradores e cujo desejo é viver naquelas terras custe o que custar. Está
disposta a pagar o preço necessário para manter seu estilo de vida e sua paz e
deseja tornar seu filho parte dessa sociedade que se reconstrói.
Além dessa questão, por si
só delicadíssima, está implícita a ideia de eugenia, já mencionada pelo
protagonista ao dizer que os negros desejavam misturar suas sementes com as
mulheres brancas em busca de aprimoramento. A gravidez de Lucy significa, em
última análise, a assimilação final do homem branco pelo homem negro, quem sabe
a incorporação ritual do algoz pela vítima, graças ao concurso da miscigenação,
enfim restabelecida. O tempo acaba com tudo e faz o explorador (“David”)
desaparecer do mapa, definitivamente.
Petrus, que a princípio se
apresenta a David como o cachorreiro, passa a proprietário da fazenda de
Lucy e patriarca do lugar, pai adotivo do filho que ela espera, assumindo até
mesmo sua proteção, tirando de David o direito de protegê-la. David vai
perdendo espaço e acaba dedicando-se a ajudar na eutanásia e, depois, a cuidar
dos corpos dos cães de Bev Shaw, tornando-se ele mesmo um dog-man.
Coetzee vai fornecendo ao
leitor subsídios para compreender a situação dos brancos que ainda não aceitam de
fato, as mudanças e a perda do poder. Em uma de suas conversas com David, Lucy
lhe diz que precisam aceitar o fato de que para ficarem ali deverão pagar o
preço e aprenderem a começar do chão.
Para ele resta somente o
trabalho que pretende desenvolver sobre Byron e o apoio que encontra em Bev, de
quem tornou-se amante apesar do desprezo que sentia e de considerá-la
extremamente feia. Para ele, tornar-se amante de Bev era o mais claro sinal de
seu declínio, no entanto, talvez, seja Bev a fazer o favor de cuidá-lo como aos
cães abandonados, assistindo-o sempre e em tudo o que precisa e ajudando-o no
processo de cura. Enquanto ele sente o fluido vital deixando seu corpo, Bev o
recompõe. Quando ele se recupera fisicamente, oferece-lhe algo que começa como
sexo e passa depois a afeto
A ligação e a identificação de David com os
cães da clínica vai sendo construída, é também através dos cães de Bev que
David inicia um processo de re-humanização, quando finalmente sente-se capaz de
amar.
No final, David faz da
clínica a sua casa, alimenta os cães, lê, toca o banjo. Desiste, finalmente, de
sua opereta.
O retorno triunfal, a volta
por cima, não acontecerá. Podemos ler essa passagem como mais uma metáfora
relativa ao pessimismo do autor quanto ao futuro dos brancos sul africanos,
pois é categórico ao afirmar que não haverá volta triunfante, dando este
capítulo da História por encerrado.
A identificação de David
com os cães velhos, abandonados e aleijados reflete sua própria posição, o
desânimo que o domina e sua inutilidade nos tempos atuais.
Por fim, sua desistência da
vida está simbolicamente representada pelo ato de renúncia à amizade oferecida
pelo cão aleijado,
Em Desonra, a
família Isaacs e Petrus são os representantes de uma classe social emergente,
que recebe benefícios por ações afirmativas dos governos, enquanto os rapazes
estupradores representam o resultado de anos de subensino, subemprego, subvida;
e a certeza de que somente o fato de serem negros não lhes garante,
automaticamente, um lugar ao sol. “
O fato de Desonra ter sido escrito somente
quatro anos após o fim do “apartheid” colabora tanto com a visão pessimista,
quanto com o fato de que havia muitos descontentes, pois a liberdade não lhes
havia trazido benefícios financeiros e sociais imediatos.
Percebe-se, igualmente, que em toda a narrativa os
conceitos de civilidade e barbárie estão indefinidos, pois ambos os grupos
apresentam indícios de terem em si, e em suas identidades, as duas
características.
O leitor chega à última página de Disgrace sem
conseguir identificar se a desonra a que se refere o título diz respeito a
David, a Lucy, a Melanie, a Bev, a Petrus, aos violadores de Lucy, ou aos cães.
Todos, cada um a seu modo, desonraram e foram desonrados. A ausência de um
código ético definidor daquilo que é ou não permitido é o principal fator, em
nossa leitura, que leva à desonra de todos.”