Proponho como um primeiro momento do debate focarmos no livro
e conversarmos sobre o que achamos da trama, dos personagens, da forma como a
historia foi contada, da qualidade e das especificidades literárias do
texto. Fiz uma pesquisa sobre a autora,
e a partir de entrevistas e artigos,
gostaria de pensar com vocês a relação entre a escritora e sua obra.
A seguir, acho que seria interessante tratarmos dos temas que
nos despertaram interesse. Algumas sugestões:
- A competição, a inveja, a compulsão, o pavor do fracasso.
-A influência da família; Casamento x sexo/romance/erotismo
- Sucesso x fracasso. O
sentido do esporte em geral e
especialmente do tênis, que nos é tão familiar. Tênis x alienação; Tênis
x personalidade: Relação de mão dupla? Tênis
x identidade de gênero. Desvantagem das mulheres devido a força física maior
nos homens? Outros fatores? Culpa por ganhar? Estratégias de treinamento. Tênis x
paixão/controle. Tênis x erotismo/agressividade.
Achei a leitura de Dupla Falta desconfortável, em muitos
momentos irritante. É insuportável a
convivência com alguém constantemente tomado pela inveja, que não aguenta ver no outro algo
que deseja e não possui, que tenta desqualificar e estragar o bom do outro e, não conseguindo ataca a si próprio, desqualificando-se.
Quero fazer uma ressalva: achei difícil de ler, mas o tempo todo pensava
que o livro seria muito bom de discutir.
Não gostei da trama, nem dos personagens. As famílias
representadas inicialmente como contribuindo para os desajustes dos
filhos, depois são apresentadas como acolhedoras . Willy me parecia
escravizada a um passado (anã que tinha que provar sua capacidade),
presentificado em um superego cruel, tirano, exigente, que deprecia tudo o que
não for absoluto. Não sabemos muito de seus pais, mas Willy parecia não
contar internamente com a presença amorosa dos pais. O pai está mais presente, mas como alguém que
não lhe apoiou, que ela vê como um fracassado, e pior, que torce pelo seu fracasso.
Ela vive uma competição ferrenha com o marido, e
assombrada pela possibilidade de perder
para ele, vai se desesperando até
fracassar totalmente. Me perguntei como
se constituiu esse superego tão severo?
Do pavor de ficar como seu pai? Da sociedade americana, onde a existência
está dividida entre perdedores e
ganhadores? E o Eric? Irritante quando
era arrogante, e mais ainda quando ficou bonzinho... Ele queria o troféu de
melhor marido?
Essas foram as minhas primeiras impressões, mas a medida que
fui conhecendo a autora e acompanhando a
sua trajetória, fui compondo melhor os personagens, construindo um olhar
diferente e a repulsa inicial transformou-se em interesse e curiosidade; senti-me mais íntima dos personagens, estimulada a “viajar”, imaginando suas
motivações e angústias.
Assim, em meu novo olhar, a inveja e a competição deixam o
protagonismo; são sentimentos decorrentes
de seu pavor do fracasso, esse sim elemento determinante da trama .
Quanto ao título, terá
sido uma dupla falta no sentido de Willy ter perdido a segunda chance de ser
feliz, ao abortar? Por ter perdido seus dois amores , o tênis e
o marido? Ou ainda, fracassado duplamente, ao tentar com o triunfo no tênis,
tamponar a “falta” que resulta da realização da incompletude vivida como
condenação à não existência ? Aqui, falo
de forma condensada sobre a teoria psicanalítica da castração e de uma
associação entre tênis/pênis/falo.
Sobre a autora:
Lionel Shriver nasceu
nos Estados Unidos , na Carolina do Norte em 1957. Sua família era profundamente religiosa, seu
pai um pastor protestante. Filha do meio entre dois irmãos, até os quinze anos era Margaret Ann Shriver, quando resolveu mudar
o seu nome. Sobre isso disse em 2007 em uma entrevista (*) publicada no “The
Guardian” : “Eu era um Tomboy. Eu cresci
com meus irmãos e escolhi um nome de menino. “
Formada e Graduada na Universidade de Columbia, viveu em Nairóbi,
Bangcoc e Belfast antes de se mudar para Londres, onde é colunista do jornal
The Guardian. Divide seu tempo entre
Londres e Nova lorque, é best-seller
americana e jornalista.
Livros publicados:
- So
Much for That;
- The
Female of the Species;
- Checker
and the Derailleurs;
- Ordinary
Decent Criminals;
- Game
Control;
- A Perfectly
Good Family;
- The
New Republic;
Livros Traduzidos:
- O
mundo pós-aniversário;
- Dupla
falta;
- Precisamos
falar sobre Kevin;
- Grande Irmão
Demorou muito tempo para
fazer sucesso, o que aconteceu com o livro “Vamos falar sobre Kevin” que virou
filme; com ele, ela conquistou o Orange Prize.
Lionel, aborda em seus
livros temas variados: sistema de saúde,
infidelidade, relações familiares, e diz que gosta de escrever sobre
personagens que não são amados e de tratar dos problemas da sociedade
americana, porque em sua opinião eles
antecipam os problemas do mundo.
Em suas entrevistas e
artigos fala muito de sua vida pessoal, de sua infância, de seu casamento, e
também reflete sobre a ligação entre sua vida
e sua obra.
Ela diz que seus livros
não são autobiográficos, mas que certamente seus personagens se beneficiam de
suas relações familiares /afetivas. Diz que seus livros são como um exercício emocional. Por
exemplo, em 2009 escreveu o livro Grande Irmão depois da morte do seu irmão por
obesidade mórbida com 180 quilos. Em sua estória, uma mulher recebe o irmão
obeso, e tem que escolher entre o marido e o irmão e escolhe cuidar do irmão.
Ela diz que não sabe se conseguiria cuidar do irmão caso fosse possível, mas
certamente se sentiu incomodada por não ter podido ajuda-lo. Em sua estória
vive essa possibilidade, tal qual em um sonho ,
tentando lidar com angustias e, criando situações para
elabora-las.
Em 2011, em uma outra
entrevista (**) ela diz que sua ficção
parte sempre de uma questão real que tem - em "Kevin", a decisão de
ter ou não ter um filho, e em "O mundo pós-aniversário", a de trair
ou não o marido . Fiquei com a impressão que em Dupla Falta Lionel pratica
muitíssimo esse exercício emocional…. e que os personagens Willy e Eric
encarnam suas fantasias, suas questões, seus conflitos, suas angústias….
Na insegurança de Willy, em sua necessidade de triunfar, no seu
desejo de ser um menino ( talvez para não se submeter ao pai todo poderoso), encontramos
Ann Margaret...
Lionel disse na entrevista de 2007(*) que em sua família havia uma linha muito tênue
entre seu pai e Deus . Contou que quando
ela tinha 12 anos e anunciou que não iria
à igreja, seu pai literalmente a agarrou pelos cabelos e a arrastou para dentro do carro. Essa
situação perdurou ate os seus 16 anos, quando ele não pôde mais fazer isso.
Nessa entrevista nos fala também de como se sentia feia,
desinteressante e alvo de gozação . Mas que agora, olhando para trás, sente-se
grata, pois é algo semelhante a ter um fracasso retumbante como novelista por
tantos anos. Ter tido a experiência de ser discriminada a fez compreender o
quão condicionais são as afeiçoes do
mundo.
Aos
15 anos, tomou a decisão de mudar de nome e fez uma correção nos dentes. Passou
a sentir-se normal.
A
entrevistadora, Lynn
Barber, em 2007 a descreve como magra e andrógina com um
corpo musculoso e mãos calejadas. Diz que
Lionel vestia roupas de Tomboy, carregava uma mochila nas costas, e
contou a ela que tinha vindo pedalando
de sua casa ainda com as roupas da festa da noite anterior. Que quando era criança não
costumava ser convidada para festas, e quando era, terminava a noite conversando com as
pessoas do buffet. Mas na festa do dia
anterior todos queriam falar com ela. Pensava que contar com isso era uma coisa
perigosa pois do mesmo jeito que essa atenção lhe era dada poderia ser retirada.
Antes de Kevin ela nunca tinha dado entrevistas, ninguém estava
interessado.....
Em
suas palavras: “ Assim, quando me sinto inclinada a me queixar tento me lembrar
o quanto eu me queixava antes por não
ter publicidade. Mas então eu decido continuar me queixando mesmo assim, porque acho que esse é um dos grandes
prazeres do mundo”.
Outro
exercício emocional, talvez diga respeito a questão maternidade/ profissão:
Ainda
segundo a entrevistadora , Lionel contou que em seus anos trinta ela se apaixonou por um escritor de
não ficção com quem viveu dez anos. Mas
sua mãe a aconselhou a não ter filhos pois eles prejudicariam seu
casamento. Contudo, na época ela não
queria mesmo crianças. A partir dos quarenta, com o tempo correndo, ela começou
a pensar novamente sobre maternidade e o
resultado foi “Kevin”. Ao ser perguntada se caso tivesse tido sucesso mais cedo , teria tido mais vontade de ter filhos, respondeu
que o motivo pelo qual nunca pensou
seriamente em ter filhos é que sempre esteve
envolvida com seu projeto de se tornar uma novelista, e isso produzia
uma adolescência estendida.
Atualmente, podemos dizer
que Lionel obteve o triunfo que Willy tanto perseguia.
O prêmio Orange lhe rendeu £30,000, fora o que contribuiu para a venda de seus livros.
Entretanto Lionel continuava até 2007 morando no mesmo apartamento; dizia que grandes
quantidades de dinheiro a deixavam mal, que não se imaginava andando a procura
de propriedades para comprar, achava isso uma perda de tempo. Andava de bicicleta para todos os cantos ,
comprava suas roupas em brechós, e se recusava a ter um celular. Enfim, não
gastava dinheiro. Não saia para comer fora porque gostava de cozinhar a própria comida; ninguém
conseguia fazê-la com o tempero que gostava. Não deixa o aquecimento ligado o
dia todo, nem no inverno. Considera-se muito fixada em reciclar, não pra salvar o planeta e sim
porque gosta mesmo de economizar, usar e usar de novo.... Também com a
lavanderia é muito econômica, não gosta
de lavar roupas....usa as mesmas roupas por toda a semana.....
Sabe que se tornou excêntrica, mas gosta de ser assim....
Aqui encontramos o
despojamento/arrogância(?) do Eric?
Fiquei curiosa sobre Lionel Shriver hoje, e encontrei no artigo –
“Eu era pobre mas era feliz” publicado
no The Guardian(***) em novembro de 2014 reflexões sobre a sua vida, já em uma
época de maturidade. Questiona uma visão
passiva e estática da felicidade. Diz que felicidade não é um estado, um ponto
de chegada, mas sim uma trajetória. Associa felicidade com energia, com estar
interessada, ter planos. Fala das dificuldades pelas quais passou ao longo da
vida, mas hoje sabe que era feliz apesar de tudo, pois vivia intensamente e
buscava seus objetivos.
Acho que Lionel teve uma trajetória movimentada. Passei a
admirar essa autora que conseguiu motivar o interesse de tantos leitores pelo
mundo afora pelos mais diversos temas.
Ao final, considerei a leitura muito válida, justamente por
nos estimular a pensar sobre a condição humana, sobre sentimentos e desejos que
em algum grau estão presentes em todas
nós, e principalmente sobre a importância de estarmos sempre vivendo de forma a
nos enriquecermos com nossas experiências.
Teresa Lirio
Deixo os links para as entrevistas, caso vocês tenham
interesse em conhecer melhor Lionel Shriver e sua obra.
Books
The Observer
Artigo de
Lynn Barber sobre Lionel Shriver publicado em 22 de abril de 2007 no The
Guardian
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(**) – Entrevista publicada no Jornal O Globo em 14/07/2011
Em 'Dupla
falta', que chega ao Brasil, Lionel Shriver aborda a competição entre homens e
mulheres
POR CRISTINA TARDÁGUILA /
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(***) Lionel Shriver: I was poor but I was happy
Artigo publicado no the
Guardian – 14/11/2014